Nosso acarajé tem axé: um universo de saberes sagrados no tabuleiro da baiana

Hermano Fabrício O. Guanais e Queiroz

No imaginário coletivo é sagrada e consagrada a ideia de que não há Bahia sem baianas e de que não há acarajé sem axé. A presença dessas mulheres de santo nos diversos espaços, largos, esquinas, praças e ruas de Salvador, e hoje em grande parte do Brasil, significa a força e a representatividade da cultura negra, da mulher negra, da religião negra, da negritude que forma e conforma a diversidade cultural do Brasil, nosso patrimônio vivo, nosso Patrimônio Cultural!

Elas afirmam identidades, inspiram, moldam paisagens, criam moda, esbanjam graciosidade e encanto, perfumam o ar com os cheiros do dendê, levam charme, humor carregado de afeto e simpatia! No seu ponto, por vezes sacralizado, impera a tradição, o respeito à ancestralidade que o alimento evoca, representa e simboliza. O acarajé e a baiana têm história, memória, identidade e axé! O acarajé é sagrado! Sagrado porque nele se assenta Yansã, e se nele não se assentasse Yansã, seria mais um bolo, mais um bolinho frito, em meio a tantos outros, no meio do caminho…! Mas não! Nele se assenta Yansã, e, por isso, nele há axé: o acarajé tem axé!

E por evocar, representar e simbolizar a história de luta de milhares de negros escravizados neste País; por não poder ser apartado de sua origem sagrada e de elementos associados à sua comercialização, “como a complexa indumentária da baiana, a preparação do tabuleiro e dos locais onde se instalam, a natureza informal do comércio e os locais mais costumeiros de sua venda, os significados atribuídos pelas baianas ao seu ofício e pela sociedade local, e nacional, a esse símbolo da identidade baiana, que também é representativo dos grupos afrodescendentes em outras regiões do Brasil”; por ser símbolo identitário da Bahia e do Brasil, o Ofício de Baiana de Acarajé foi Registrado, em 2005, a pedido da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau e Receptivo e Similares, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como Patrimônio Cultural do Brasil. Patrimônio dos Terreiros, das Baianas, do Brasil!

Inscrito no livro dos saberes, na forma do Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2000, e de acordo com o quanto preconizado pelo art. 216 da Constituição Federal de 1988, o Ofício de Baiana de Acarajé desafiou e desafia órgãos de patrimônio e cultura e também legislações em vigor na implementação de sua Salvaguarda e de direitos culturais. Dos terreiros e rituais do candomblé, os saberes e práticas deste ofício tradicional vinculado, matricialmente, à Bahia, o acarajé, de alimento sagrado e votivo, transformou-se, pelas mãos de mulheres fortes, símbolo de resistência e fonte de sustento e renda; de produto resultante de práticas tradicionais da religiosidade afro-brasileira, a objeto de cobiça, indevida e criminosamente, usado por um mercado perverso e discriminatório; de comida de santo, especialmente ofertada a Yansã e Oyá, a bola de fogo, servida quente, em espaços de Axé e fé, é apropriada e até rebatizada por denominações religiosas, estranhas e contrárias às de matriz africana, de “bolinho de Jesus”.

Toda essa riqueza ancestral simbolizada em cada ponto dos bordados de richelieu e nos traçados do pano da costa; na paz que exala do branco de rendas; e na alegria do brilho colorido de colares e contas, na fé que as religiões de matriz africana sustentam, grita por apoio, conhecimento e reconhecimento para além dos títulos, das fotos e de servir como elementos decorativos de festas e de gestores e políticos de plantão.

A Lei Aldir Blanc, alento e oásis em meio à pandemia do COVID 19, mediante intermediação entre o Ministério do Turismo e sua Secretaria Especial da Cultura, com apoio financeiro da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e sua autarquia, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, vem apoiar projeto inédito de salvaguarda do Ofício de Baiana de Acarajé, denominado “Histórias, Memórias e Acervos do Memorial das Baianas de Acarajé”. Abrangendo 16 municípios e 8 territórios da Bahia, em formato on line e presencial, o projeto visa a implementação de ações de salvaguarda – apoio e fomento – ao Ofício de Baiana de Acarajé, a partir da criação de um Museu Digital com documental e iconográfico sobre o ofício, legado, trajetória e catalogação de acervos de baiana; edição do livro “Tradição, Ofício e Práticas cotidianas das Baianas de Acarajé”, da pesquisadora e colaboradora Vanessa Castañeda; produção de um documentário historiográfico intitulado “Do Dendê ao Acarajé”, que trata do processo de produção do dendê, bem associado ao Ofício de Baiana; disponibilização de lives educativas, com abordagem de temas relativos a patrimônio imaterial, empreendedorismo cultural, logística, atendimento ao cliente, gastronomia, empoderamento feminino e associativismo; e, por fim, realização do curso “Reprodução dos Saberes, Fazeres e Identidade”, para o desenvolvimento de reflexões sobre o que é ser Patrimônio Cultural.

Esta iniciativa da ABAM, por sua capacidade de fortalecimento de tão relevante prática sociocultural, Patrimônio Cultural do Brasil, merece altar e incenso no contexto da boa e adequada aplicação de recursos da Lei Aldir Blanc! Salve as Baianas de Acarajé! Salve o Patrimônio Cultural do Brasil!